sábado, 16 de fevereiro de 2008

Mais um excelente texto - Prova de Ingresso

Joana não beneficiou de qualquer apoio ao nível da Orientação Vocacional e Profissional na sua escola secundária, uma vez que a professora, perita de orientação vocacional, se tinha reformado e não tinha sido substituída por ninguém capaz de a ajudar. Só as conversas com os pais e amigos representaram a ajuda necessária, mas foi com muitas dúvidas que, no final do 12º ano, fez a sua candidatura a vários cursos do Ensino Superior. Entrou no curso de professores do Ensino Básico-1º Ciclo e ficou contente porque gostava muito de crianças, mas a sua postura tímida e pouco assertiva fazia-a pensar que nunca viria a ser uma boa professora. Durante o curso não teve dificuldade em se apropriar dos conteúdos científicos das diversas disciplinas porque tinha interesse pelo saber e grande capacidade de estudo, o que fazia dela uma aluna com bons resultados nos testes e trabalhos escritos.

Contudo, tal como ela mesma tinha consciência, os primeiros contactos com o terreno evidenciaram os seus problemas de comunicação e claras dificuldades na gestão de uma sala de aula. Se com as crianças uma a uma, numa relação não mediada pelo ensino-aprendizagem, Joana era capaz de estabelecer um bom entendimento, com a turma não o conseguia fazer. A Joana na teoria sabia tudo e era correcta a forma como entendia o currículo e planificava as aulas, mas na prática era uma estagiária medíocre por não conseguir ultrapassar a sua timidez, quase uma característica da sua personalidade. Há alunos cujo problema é inverso ao da Joana e isso é igualmente problemático. Que papel podem ter os professores da formação inicial em relação ao problema da Joana?

Ao contrário do que o Decreto Regulamentar nº. 3/2008 [1] parece indicar, não há hoje formação inicial de professores sem verificação de competências em contexto real. Nas licenciaturas em Educação, isto é, aquelas que se dedicam a formar professores, a iniciação à prática profissional é obrigatória, quer seja numa modalidade de estágio integrado ou de estágio final (concentrado no último ano). Ora as escolas onde decorrem os estágios não são laboratórios ou escolas fictícias (nem sequer escolas “anexas” como aconteceu em tempos), nem há escolha de escolas melhores para estágios; pelo contrário a diversidade social e cultural é um dos critérios mais importantes para a selecção da escola e das turmas. O Ministério do Ensino Superior, muito provavelmente concertado com o Ministério da Educação, solicita na aprovação dos cursos a entrega dos protocolos celebrados com as escolas de Ensino Básico que permitem aos alunos a realização de estágios, não há por isso forma de fugir a esse controle, ele já existe.

É a constante interacção dos alunos de formação inicial de professores com situações reais que permite detectar casos como o da Joana e que impede que a sua certificação possa ocorrer sem que o problema esteja resolvido, não obstante a Joana ter provado que no domínio dos conhecimentos ela até estaria apta para exercer a sua profissão. Muita gente acredita que depois de se certificar alunas como a Joana, ela perderá a sua timidez e conseguirá gerir uma turma, mas se não conseguir? Podemos mesmo pensar que o problema se pode agravar. No entanto, a Joana também ultrapassaria provavelmente com êxito a prova de ingresso ao Ensino Superior tal como está proposta no decreto que o ME concebeu.

Afirma-se, na introdução do já referido Decreto Regulamentar que estabelece o regime da prova de Ingresso na Profissão, que ela será uma prova de avaliação de conhecimentos e competências transversais às diversas áreas de docência, mas no resto do decreto nada mais consta sobre as referidas competências. No artigo 5º só se refere uma componente comum (a todos os grupos de recrutamento) composta pelo domínio da Língua Portuguesa e pela capacidade de raciocínio lógico necessário à resolução de problemas, estas obrigatórias. Os conhecimentos sobre a organização do sistema educativo, da escola e da sala de aula e os domínios das línguas, das ciências experimentais, das TIC ou das expressões poderão também ser avaliados, mas aí estamos no domínio do “pode ser” e sabemos que isso significa uma ausência quase certa ou pelos menos uma posição secundária, menor. De resto, apenas o título refere “conhecimentos e competências”, pois em todos os artigos em que se pretende consubstanciar e clarificar o que é a prova só se fala de conhecimentos. Ora fará sentido que professores recém formados já se tenham esquecido de tudo o que aprenderam na formação inicial, cujo grau é agora o mestrado? Ou será que se quer justamente questionar o que eles aprenderam? Se é assim, este não é o meio apropriado, pois há um sistema de avaliação do Ensino Superior, esse sim o instrumento adequado para proceder a tal questionamento.

A Joana percebeu no contexto da sala de aula, numa turma real com alunos reais, os seus problemas ao nível da comunicação. Nas provas escritas este problema era inexistente, tal como numa prova prática no domínio dos conhecimentos.

O que a prova avalia (tal como é proposta neste decreto) não é o desempenho profissional do docente, uma vez que este é impossível de perceber em provas escritas centradas em conhecimentos e é essa a perspectiva que domina neste decreto. Há assim incoerência entre o que se afirma como a fundamentação para a introdução desta medida, leia-se “verificar em contexto real a capacidade de adequação do docente às exigências do desempenho profissional docente” e o que ela vem de facto avaliar. Se os professores mais jovens (período probatório e/ou contratados) estão como os outros sujeitos à avaliação de desempenho porque é que ela não basta? (consultar artigos 27 e 28 do decreto regulamentar [2] em que são especificamente referidas estas situações). Seria então mais justo considerar uma nota mínima a obter na avaliação de desempenho para que se pudesse ingressar na carreira. Ou será que o Ministério da Educação não acredita o suficiente no modelo de avaliação que propõe? De facto, a verificar-se esta sobreposição de instâncias de controlo e avaliação, mais tarde ou mais cedo se revelará a sua ineficácia.

Joana avaliou o esforço que era necessário fazer para mudar as características de personalidade que desde sempre tinham sido as suas e o que isso lhe ia custar. Ponderou também a mudança de curso e os custos que também teria com isso. Mas Joana teve sobretudo pena que o seu ingresso no ensino superior se tenha feito com base numa média aritmética! Em nenhum passo desse seu caminho houve informação ou diálogo que lhe permitisse analisar as suas escolhas ou eventualmente, ajuda na decisão.

Uma prova que na entrada para o Ensino Superior que ajudasse a Joana a tomar uma decisão mais informada sobre as suas escolhas vocacionais/profissionais, essa é que teria feito falta à Joana. No mais, a avaliação de desempenho é suficiente para todos aqueles que de algum modo já iniciaram a profissão e querem ingressar na carreira.


Carla Cibeles in http://www.escolainfo.net/

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